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sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Decrescimento sereno: um conceito altamente polêmico

Por: Beja Santos (Fonte: http://va.vidasalternativas.eu/ )

Serge Latouche é o grande paladino do modelo de decrescimento sereno e sustentável. As suas teses acabam de aparecer entre nós e seguramente que vão alimentar discussões, sobretudo nos meios ligados à ecologia, aos modelos econômicos alternativos e à alterglobalização: “Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno”, por Serge Latouche, Edições 70, 2011. Outrora, falava-se em reduzir, reutilizar e reciclar. Na sua proposta para o decrescimento sereno convivial e sustentável, Latouche propõe: reavaliar, reconceitualizar, reestruturar, redistribuir, relocalizar, reduzir, reutilizar e reciclar. Vivemos no mundo em que os danos ambientais estão largamente denunciados mas como temos a nossa refeição garantida todos os dias, tudo pretendemos ignorar. Há décadas que se fala nos riscos a prazo de um conjunto de substâncias como o pesticida, muito pouco se fez; quase todos os dias emanam relatórios perturbadores de entidades respeitáveis, continuamos vergados ao crescimento pelo crescimento, parece que há uma incapacidade generalizada para pôr um travão a este bólide sem condutor, sem marcha atrás e sem travões.

Fazendo fé à argumentação de Latouche, vamos passar em revista os dados fundamentais deste projeto de sociedade de decrescimento que o autor apresenta como a única alternativa que se pode pôr a uma previsível catástrofe ecológica e humana. Primeiro, a despeito de muita indiferença dos meios políticos dominantes, há uma gradual atenção ao decrescimento que já aparece associado à rejeição do crescimento ilimitado o tal que se pauta pelo culto irracional e quase idólatra do crescimento pelo crescimento. Retomando enunciados e olhares que vêm da contestação ambiental e de muitos intelectuais alternativos, o projeto de decrescimento orienta-se para uma sociedade em que se viverá melhor, trabalhando e consumindo menos. O conceito de desenvolvimento sustentável fundamenta-se em ambigüidades e equívocos, tudo leva a crer que os economistas que no fundo suspiram só pelo crescimento pelo crescimento até gostem do conceito, tão neutro que ele é. A economia neoclássica condescende com a necessidade de apregoar a sustentabilidade, mas no fundo mantém-se indiferente às leis fundamentais da biologia, da química e da física. Esses economistas negam a bioeconomia, ou seja, rejeitam pensar a economia no interior da bioesfera. Segundo, a sociedade em que vivemos é a da acumulação ilimitada, nela o importante é criar desejos ao consumidor, dar-lhe crédito para ele nunca deixar de consumir e programar os produtos para que se renove regularmente a necessidade de sua substituição. Chegamos assim a uma pegada ecológica insustentável, vivemos do rendimento e do patrimônio. Os excessos cometidos têm sido tão grandes que não há ninguém que não se interrogue se não estamos a preparar o nosso desaparecimento: uma guerra atômica, através de pandemias, esgotando os recursos naturais e destruindo a biodiversidade, mediante alterações climáticas que tornem a existência inviável.

As discussões sobre o modelo econômico alternativo prosseguem, mas parece que ninguém quer pôr em causa a lógica de desmesura do sistema econômico. Terceiro, para entender o decrescimento é necessário compreender o ciclo dos oito “R” que Latouche preconiza: reavaliar (os valores do passado são incompatíveis com os desafios do presente, precisamos de cooperação, vida social, autonomia como os valores indispensáveis para substituir a competição desenfreada, o consumo ilimitado e a eficiência produtivista); reconceptualizar (porque esta mudança de valores pressupõe uma outra maneira de apreender a realidade); reestruturar (ou seja, adaptar o aparelho de produção a essa mudança de valores o que significa que se terá de pôr em causa e muito provavelmente abandonar o capitalismo); redistribuir (a reestruturação das relações sociais acarretará uma distribuição); relocalizar (produzir localmente uma parte fundamental do que é indispensável para satisfazer necessidades da população); reduzir (para diminuir o impacto na bioesfera das nossas maneiras de produzir e consumir); reutilizar/reciclar (aqui parece estar toda a gente de acordo, é um conceito pacífico). Destes oito “R” três têm um papel estratégico, como escreve Latouche: a reavaliação, porque ela preside a toda a mudança, a redução porque condensa todos os imperativos práticos do decrescimento e a relocalização porque diz respeito à vida quotidiana e ao emprego de milhões de pessoas. Relocalizar será inventar a democracia ecológica local com as suas relações transversais, virtuosas e solidárias, com um elevado grau de auto-suficiência alimentar, mas também econômica e financeira.

O que nos remete para um valor profundo da regionalização, ela própria com uma decrescente pegada ecológica graças à produção e ao consumo sustentáveis e uma elevada riqueza em iniciativas locais decrescentes. Quarto, reduzir será contrariar a irracionalidade da globalização, onde camarões dinamarqueses são descascados em Marrocos e regressam à Dinamarca, lagostins escoceses são expatriados para a Tailândia para ser descascados à mão e regressar à escócia para ser cozidos. Esta globalização irracional assenta no uso indiscriminado transporte e na indiferença pela velocidade. Este decrescimento, como é óbvio, carece de um programa político, não pode ser implementado sem uma grande adesão das populações: para reduzir a pegada ecológica; para se aplicar eco taxas; para se fixarem atividades econômicas e pessoas em meio local, para encorajar uma produção o mais local, sazonal, natural e tradicional que for possível; para transformar os ganhos de produtividade em redução do tempo de trabalho e em criação de empregos; para reduzir os desperdícios de energia; e para impulsionar os chamados bens relacionais, como a amizade e o conhecimento. Estamos pois no centro das grandes controvérsias: nesta acepção do decrescimento o que seria o pleno emprego, que modelo capitalista se poderia institucionalizar, isto logo à cabeça. Está aberta a grande discussão.

Em jeito de conclusão, é bom que se diga que os partidários do crescimento são rotulados de todas as enormidades: são contra o progresso, contra o turismo de massas, a inovação e competitividade, por exemplo. Latouche responde que a realização de uma sociedade de crescimento passa necessariamente por um reencantamento do mundo, o que ninguém sabe muito bem o que quer dizer. Querer travar a banalização das coisas requer artistas e entusiastas pelo decrescimento. Resta saber qual a adesão que este modelo alternativo encontrará qual o entusiasmo a este modo de vida gradual e serenamente decrescente. As grandes discussões vão agora começar.